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Rota Vicentina: Trilho dos Pescadores

10 de outubro, 2016

Para quem não gosta de fazer férias na praia, talvez a Rota Vicentina não fosse a primeira escolha na lista de destinos de férias. Contudo já há um par de anos que andava a tentar reservar uns dias para fazer este trilho. A promessa de ser uma das paisagens costeiras mais bela, selvagem e intocada da Europa, ter no Trilho dos Pescadores uma rota (quase) exclusivamente pedestre, bem marcada e (ainda?) longe das multidões foram argumentos suficientes e convincentes para trocar as montanhas pela costa. E bem vistas as coisas, como não implicava estender a toalha na areia e ficar a torrar ao sol, não poderemos classificar a viagem pela Rota Vicentina como “fazer férias na praia”.

O plano foi seguir o Trilho dos Pescadores entre Porto Covo e Odeceixe em quatro dias, num total de 75 quilómetros, em regime de semi-autonomia: mochila às costas apenas com o essencial.

Dia 1, Porto Covo - Vila Nova de Milfontes

Saímos de manhã cedo do Ahoy Porto Covo Hostel, onde passamos a noite a recuperar das longas horas passadas no comboio e no autocarro no dia anterior. O anfitrião Nicolau teve a gentileza de nos dar várias recomendações para todas as etapas do Trilho dos Pescadores. Uma ajuda preciosa, que permitiu antecipar problemas e facilitou o planeamento de algumas questões para os dias seguintes.

Ninho de cegonha na falésia

A areia

A primeira etapa do Trilho dos Pescadores, não sendo a mais longa, será provavelmente a mais dura pois o piso é maioritariamente arenoso. Logo nos primeiros quilómetros, com a ilha do Pessegueiro a dominar a paisagem, já a areia sob os nossos pés dificultava a progressão. Assim que chegamos à Praia do Queimado, aproveitamos a possibilidade de seguir sempre pelo areal mais compacto.

Até à praia do Malhão é possível seguir sempre junto ao mar durante quase 5 quilómetros, contudo há que ter em conta o estado do mar e as marés pois num ou dois pontos o areal estreita e a passagem poderá ser complicada ou mesmo muito perigosa. Na praia dos Aivados o areal é maioritariamente ocupado por calhaus arredondados pelas ondas, dificultando a escolha do melhor caminho.

Longo areal entre a praia do Queimado e a praia do Malhão

As falésias

No alto da falésia junto à praia do Malhão, vemos o longo areal que acabamos de percorrer. Ao fundo no horizonte avistamos as torres da refinaria de Sines e mais para o interior as nuvens negras da tempestade que naquele dia atingiu Lisboa e arredores, e que contrariamente às previsões acabou por não nos afectar. Paramos no alto para observar tudo à nossa volta. Ali a perspectiva muda tudo. Só dali do alto pudemos apreciar a paisagem surpreendente do longo caminho que acabamos de percorrer no areal. Era apenas o primeiro dia e já estava a valer a pena.

A praia do Malhão vista do alto da falésia

A partir daqui e até ao final desta etapa o caminho era percorrido junto às falésias, tão frequentadas pelos pescadores que baptizam este trilho e que parecem pouco preocupados com o risco de estarem sentados à beira do precipício. Por outro lado, as cegonhas que por aqui já abundam, escolhem a segurança dos pináculos de rocha para nidificar. Quando se está junto a um penhasco, ter asas é seguramente uma vantagem.

A imensidão do oceano aos nossos pés

Pés doridos

O final da etapa, da Ponta das Barcas até Vila Nova de Milfontes, foi mesmo a maior dificuldade do dia. Já com algum cansaço nas pernas (e nos pés), ter de percorrer quase 4 quilómetros em estradão com o final a ser feito pelo meio de urbanizações e com o centro de Vila Nova de Milfontes na altura todo em obras (o que dificultou bastante encontrar as marcas da rota) foi mesmo o único ponto menos positivo deste dia. Contudo é uma etapa belíssima e se há conclusão a tirar deste dia, é que percorrer a Rota Vicentina foi uma boa escolha. As pernas doíam após uma etapa longa, mas mal podíamos esperar pelo dia seguinte.

Passear junto às falésias é um dos pontos altos do Trilho dos Pescadores

Impossível não se cruzar com pescadores no Trilho dos... Pescadores


Dia 2, Vila Nova de Milfontes - Almograve

Ouve-se de madrugada o barulho da chuva na janela. Os pensamentos que se seguiram envolveram duas pessoas a caminhar junto à costa completamente encharcados pela chuva, rodeados por relâmpagos que batiam com estrondo no oceano. Um pesadelo que desaparece quando o dia desperta e pela janela vemos que não só a chuva tinha passado como o sol já espreitava outra vez. Felizmente seria um dia em que não nos íamos separar do protector solar e dos óculos escuros e a última vez nesta viagem que se ia sentir a ameaça de chuva.

Porto de abrigo na Ponta das Barcas

Má escolha

Para esta etapa o início podia ser feito de duas maneiras: seguindo a rota pelo traçado original, mas com uma boa parte junto à estrada nacional; ou, usar a travessia de barco do Rio Mira e com isso atalhar quase 3 quilómetros de etapa. Um pouco hesitantes e sem saber se a travessia de barco era possível àquela hora, optamos por seguir o traçado original, já que teríamos de voltar para trás para apanhar o barco. Rapidamente nos arrependemos.

A Primavera no Alentejo

Caminhar junto à estrada nacional, com o barulho dos carros e camiões a passar junto a nós não é muito agradável. A única vantagem que há em seguir por este traçado é mesmo a vista sobre Vila Nova de Milfontes a partir da ponte sobre o rio Mira, onde enormes cardumes de peixe nadavam à superfície, mas desaparecendo em fracções de segundo sempre que alguma ave rasava à superfície do rio.

Entre a praia, o campo e a floresta

Atravessamos várias florestas nesta etapa. De sobreiros, de acácias – uma espécie invasora que é a grande ameaça à paisagem da costa vicentina – sempre alternando com os canaviais e as dunas.

O colorido dos campos agrícolas costeiros

Onde não se encontram florestas, encontram-se campos agrícolas. Um deles exclusivamente para o cultivo de relva destinada aos grandes palcos mundiais do futebol. Quem diria que a mesma relva onde um dia estarão a brilhar astros do futebol, também foi pisada por dois humildes caminheiros da Rota Vicentina.

Padrões do cultivo da relva


Dia 3, Almograve - Zambujeira do Mar

O trilho mais belo

Começamos bem cedo neste dia, pois tínhamos pela frente uma longa etapa de 22 quilómetros. Saindo de Almograve, percorremos uma estrada em terra batida durante um par de quilómetros até finalmente entrarmos nas dunas. O que se seguiu é possivelmente um dos trilhos pedestres mais encantadores de Portugal. Desde o Porto da Lapa das Pombas até ao Cavaleiro, são aproximadamente 6 quilómetros de trilhos junto à falésia, atravessando uma paisagem costeira pristina e selvagem. O melhor é que o fizemos praticamente todo sem ver nem ouvir ninguém, tendo por companhia apenas as aves, o barulho do vento e das ondas.

Mariolas num marco da Rota Vicentina

A luz dourada da manhã e a côr laranja-torrado da areia combinam na perfeição

Cabo Sardão

O Cabo Sardão é o ponto intermédio desta etapa, onde se justifica uma paragem mais prolongada. Não só a paisagem é belíssima com falésias imponentes repletas de padrões rochosos que parecem esculpidos, como também impressiona a quantidade e diversidade de aves que ali se encontra. Tínhamos feito uma paragem mais prolongada no Cavaleiro antes de aqui chegarmos, sem prevermos que o Cabo Sardão é que seria o ponto ideal para parar, contemplar a paisagem e levantar o ânimo com uma sanduíche. De preferência acompanhada com uma mini.

Aproximação ao Cabo Sardão, umas das mais belas paisagens da costa portuguesa

A imponência do Cabo Sardão, sempre em agitação com a enorme variedade de aves marinhas que nidificam nas falésias

O trilho mais longo

A partir do Cabo Sardão há que percorrer um longo trilho em terra batida, que pareceu por vezes um pouco entediante, mas sempre compensado por ser percorrido junto às falésias que se encontram repletas de esteva, cujas folhas cobertas por seiva pegajosa brilham com a luz reflectida. O intenso aroma da esteva misturado com a brisa do mar, produzindo um cheiro muito agradável e relaxante, também ajudava a esquecer os quilómetros que já pesavam nas pernas e nos ombros. Excepção feita aos últimos 3 quilómetros que são percorridos junto à estrada, a partir da Entrada das Barcas até se chegar à Zambujeira do Mar, onde termina a etapa.

Só nós, o silêncio e muita areia

Embora longa, esta etapa concentra o que há de melhor na costa Vicentina: paisagens costeiras selvagens, repletas de vida selvagem, vegetação, cores e de aromas, portos de pesca artesanal, falésias imponentes e praticamente desocupadas. São vinte e dois quilómetros que nos estimulam todos os sentidos e que merecem ser percorridos a pé e sem pressas. É do melhor que temos em Portugal.

Ao longe o cabo Sardão

As falésias rochosas dão a sensação constante de mar agitado


Dia 4, Zambujeira do Mar - Odeceixe

O cansaço

Último dia desta viagem. De Zambujeira do Mar até Odeceixe restavam percorrer os últimos 18 quilómetros do trilho dos pescadores da Rota Vicentina. Após Odeceixe, é possível continuar a Rota até Sagres pelo Caminho Histórico, contudo – por enquanto – a nossa viagem iria terminar no final desta etapa.

Saindo de Zambujeira do Mar entramos no trilho que invariavelmente é percorrido junto à falésia que nos iria levar até à praia dos Alteirinhos. Ainda meio adormecidos pelo despertar madrugador e pelo cansaço acumulado, estava a ser difícil absorver as sensações e as paisagens desta etapa. A máquina fotográfica trabalhava pouco e o diálogo era reduzido. Limitamo-nos a caminhar para tentar despertar.

Final do dia na Zambujeira do Mar

O refúgio perfeito

Sensivelmente a meio do percurso chegamos a uma praia cujas falésias cobertas de erva verde e flores, rodeavam o areal onde desagua um pequeno ribeiro numa queda de água, vindo da encosta onde no topo está o que parece ser uma bela casa de férias. O cenário ideal para um refúgio perfeito para o isolamento, longe de uma vida agitada. O nome do local imortaliza quem aqui passava os dias de Verão: praia da Amália.

Trilho da praia da Amália

A esteva, impossível ficar indiferente ao intenso aroma agradável desta planta

Um adeus demorado

A vista icónica sobre a praia de Odeceixe a partir da Ponta em Branco significa que o final do Trilho dos Pescadores está próximo. Tínhamos planeado descer até à praia e aí chamar um táxi, sabendo que restavam percorrer 3 quilómetros por estrada até Odeceixe. O cansaço acumulado e a pouca vontade em caminhar em estrada como no dia anterior justificaram esta decisão.

Ligamos para o táxi – “o” táxi – de Odeceixe para nos vir buscar. Atende uma simpática senhora, apenas para nos dizer que estaria indisponível todo o dia. Fornece-nos o número de outro táxi, talvez “o” táxi de Odemira, apenas para saber que o mesmo se encontrava longe e que só estaria disponível na melhor hipótese daí a duas horas e talvez só ao final do dia. Assim o destino ditou que o final fosse percorrido como até aí: a pé.

A vista sobre a praia de Odeceixe anuncia o final desta viagem

A longa e deserta estrada até Odeceixe, sob o sol particularmente quente daquele início da tarde, apenas suavizado pelas poucas sombras encontradas pelo caminho, foi uma longa e demorada despedida, mas condizente com a forma ideal de encarar um passeio pela costa alentejana: calma e lentamente de forma a aproveitar tudo ao máximo e até ao último segundo. E é de todo recomendável que se percorra a pé e calmamente este Trilho dos Pescadores. Um projecto exemplar de turismo sustentável.

A vista sobre o mar termina na Ponta em Branco, um último olhar em jeito de despedida


José Brito
Imagens e palavras por José Brito.
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